A medicina do futuro
Hipertensão e diabetes fazem parte da lista de doenças muitas vezes silenciosas que acabam sendo diagnosticadas durante avaliação
O superintendente de Ensino e Pesquisa do HCor, Prof. Dr. José Eduardo Krieger, nasceu literalmente dentro de uma faculdade. Filho de um dos médicos que fizeram parte do núcleo acadêmico pioneiro da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, no interior paulista, ele passou a infância no bucólico campus, instalado dentro de uma área ocupada originalmente pela Fazenda Monte Alegre.
Já há experimentos promissores com células-tronco no HCor. Iniciaremos um trabalho nessa linha este ano. Em uma cirurgia de revascularização, elas serão injetadas no organismo para auxiliar o procedimento a ter um efeito melhor a longo prazo, reduzindo inflamação e deposição de colágenos
Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da USP, além de dirigir o Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do InCor-HCFMUSP. No ano passado, assumiu a Superintendência de Ensino e Pesquisa do HCor. Seus estudos estão focados na identificação de marcadores moleculares associados à gênese de doenças cardiovasculares e no desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas para regeneração cardíaca. Na entrevista a seguir, Krieger fala dos avanços e desafios da medicina:
HCor Saúde – Qual o maior desafio atual da medicina?
Jose Eduardo Krieger – Avançamos bastante, com uma grande repercussão na curva da longevidade. Nos últimos 120 anos, a Europa e os Estados Unidos saíram de uma expectativa de vida de 35 para 80 anos. Aqui no Brasil, nas últimas três décadas, chegamos bem próximo disso. Mas criamos um modelo de saúde que é insustentável. Isso vale para todos os países, sem exceção. Donos de uma das maiores economias do mundo, os Estados Unidos gastam 18% do PIB com o setor e não possuem os melhores indicadores de saúde. O Brasil investe perto de 10% e enfrenta problemas semelhantes.
Se o problema não é o volume de dinheiro investido, onde está a distorção do modelo?
J.E.K. – Ele está pensado de forma errada. Cerca de 70% dos gastos do sistema estão concentrados nas doenças crônico-degenerativas. E esse dinheiro é consumido na última década de vida do indivíduo, quando a medicina não tem muito o que fazer. É necessário corrigir essa curva, apostando em uma medicina que seja preditiva e antecipativa. Tome-se como exemplo a hipertensão. Nas primeiras três ou quatro décadas de vida, o paciente não sente nenhum sintoma da doença. Com frequência, ele também não está sentindo nada quando o problema é diagnosticado. O grande desafio é identificar em grupos bem mais jovens quais deles terão maior probabilidade de desenvolver hipertensão e outros problemas. Aí é possível trazer essa pessoa para o sistema de saúde e iniciar o tratamento de forma precoce.
De que forma é possível modificar esse cenário?
J.E.K. – Começamos a dar os primeiros passos nessa direção com as descobertas no campo da genética. O sequenciamento de vários genomas, incluindo o humano, abriu uma nova perspectiva de avanço para a medicina.
Já existem exemplos no HCor de como a genética ajuda em tratamentos?
J.E.K. – Estamos desenvolvendo na Superintendência de Pesquisa estudos com marcadores para identificação de pacientes portadores de variantes congênitas, que conferem risco de desenvolver doenças cardiovasculares como as dislipidemias e a hipertensão arterial.
No futuro, a tendência é termos tratamentos cada vez mais individualizados?
J.E.K. – Sim. Hoje, os tratamentos são prescritos com base na resposta média de grupos de 100.000 indivíduos. É o que podemos fazer de melhor no momento. Mas estamos tentando entender melhor as relações entre os fatores genéticos e ambientais para que seja possível prescrever a melhor droga para cada caso. Outra linha importante de pesquisa é a da regeneração. Mesmo se uma pessoa tomar todos os cuidados com a saúde desde cedo, o organismo vai se degenerando. A medicina está tentando descobrir formas de intervir nesse processo.
Em que estágio se encontram essas pesquisas na área cardiovascular?
J.E.K. – A genética e as estratégias de regeneração podem transformar a medicina atual. Já há experimentos promissores com células-tronco. Iniciaremos no HCor um trabalho nessa linha este ano. Em uma cirurgia de revascularização, elas serão injetadas no organismo para auxiliar o procedimento a ter um efeito melhor a longo prazo, reduzindo inflamação e deposição de colágeno, entre outras coisas. Conduziremos o estudo do HCor com umgrupo de 40 pessoas. Ainda não conseguimos criar músculo em laboratório. Estamos tentando, mas em uma fase de pesquisa ainda longe de testes em seres humanos.
Hoje, é possível ver um senhor de 90 anos dirigindo seu próprio carro, algo impensável há algumas décadas
De que forma são feitos esses estudos?
J.E.K. – A área de regeneração cardíaca é fascinante. Estamos trabalhando na ideia de reprogramar uma célula para que ela se transforme em uma célula embrionária. Nesse estágio, ela pode dar origem a cardiomiocitos, ou seja, as células musculares que compõem o músculo cardíaco. Seu desenvolvimento bem-sucedido no organismo permitiria construir um novo coração dentro do coração doente. Mas a coisa não é tão simples. O coração não funciona com células isoladas. Elas precisam se conectar de forma perfeita, como um jogo de Lego. Algumas vezes, a célula que injetamos provoca arritmia. Estamos em busca das causas que provocam esse efeito colateral. Uma das tentativas envolve modificar a estrutura dessa célula para evitar a arritmia. Nossa equipe realiza no momento testes com camundongos e faremos experimentos com porcos geneticamente modificados. Esses animais foram desenvolvidos na Alemanha e se encontram em Pirassununga, no interior de São Paulo.
Os trabalhos em genética e regeneração vão expandir ainda mais a longevidade humana?
J.E.K. – Independentemente do tempo, o importante é ter uma boa qualidade de vida até o fim. Algumas pessoas já conseguem chegar a esse ponto. Hoje, é possível ver um senhor de 90 anos dirigindo seu próprio carro, algo impensável há algumas décadas. O foco é trazer os avanços da medicina para um grupo cada vez maior de pessoas.